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Venezuela: A grande perplexidade - Análise após as eleições na Venezuela

Artigo de opinião publicado em 20 de agosto de 2024 em resposta aos acontecimentos que se seguiram às eleições presidenciais na Venezuela, em Other News.




Relación geopolítica entre EEUU y Venezuela
Bandeiras dos EUA e da Venezuela

Quanto à possível fraude eleitoral na Venezuela, aguardo com serenidade a decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Não tenho razões para ter menos confiança neste tribunal do que no Supremo Tribunal dos Estados Unidos, depois de ter decretado a impunidade total dos presidentes, em óbvio favorecimento de Donald Trump, ou no Supremo Tribunal do Brasil, depois de ter mantido Lula da Silva na prisão sem um julgamento final sobre os crimes pelos quais foi condenado - injustamente, como se veio a verificar.


O que me leva a escrever é a minha perplexidade perante a espantosa atenção noticiosa mundial sobre a Venezuela, toda ela movida pela certeza de que houve fraude e de que Nicolás Maduro é um ditador sanguinário. O genocídio em Gaza parece um episódio de videojogo comparado com a gravidade do que está a acontecer na Venezuela. As crises no Sudão, no Quénia, na Tanzânia, na Nigéria e na Guatemala são triviais quando comparadas com o horror na Venezuela. Este foco global e politicamente monolítico na Venezuela faz-me lembrar um foco recente na Ucrânia: estaremos perante um novo episódio de guerra de propaganda, uma parte inerente da estratégia de mudança de regime?


Qualquer pessoa familiarizada com a história dos Estados Unidos sabe que a defesa da democracia por parte dos Estados Unidos esteve sempre subordinada aos interesses económicos e geopolíticos do país, tal como definidos pelas classes dominantes, grupos económicos ou elites do momento. A esquerda democrática latino-americana tem tido uma experiência trágica deste facto.


Poder-se-á perguntar, portanto, por que razão os Estados Unidos estão tão interessados em defender a democracia na Venezuela. Na minha opinião, a resposta é relativamente óbvia. Os Estados Unidos querem controlar as maiores reservas certificadas de petróleo do mundo e fechar as portas da América Latina à China, tal como fizeram na Europa.


Como tem sido o caso em muitos outros países (mais recentemente na Ucrânia em 2014), esta é uma estratégia de mudança de regime. Dado que o objetivo é o já referido, apoia as forças políticas que garantem a salvaguarda desse objetivo. Na Venezuela, dado o forte sentimento soberanista que vem de muito antes de Hugo Chávez Frías, essa garantia é dada pelas forças mais extremistas e mesmo fascistas de Corina Machado. Há uma outra oposição na Venezuela, alguma anti-chavista, alguma formada por chavistas dissidentes, democrática, moderada, alguma de esquerda, mas nunca é mencionada, porque essa oposição, por mais anti-Maduro que seja (e é), é soberanista. Por conseguinte, não é fiável do ponto de vista dos interesses económicos e geoestratégicos dos Estados Unidos. Há cerca de dez anos, a situação na Síria era algo semelhante. Havia uma oposição democrática moderada ao governo de Assad, mas não era essa oposição que tinha o apoio da "comunidade internacional". Eram os extremistas islâmicos, e as razões eram as mesmas. O que é específico no caso da Venezuela é o entusiasmo com que parte da esquerda democrática latino-americana se alinha com os Estados Unidos nesta cruzada. Oficialmente é o contrário, ou seja, são os Estados Unidos que apoiam as iniciativas latino-americanas, mas a verdade oficial neste domínio é, no mínimo, uma meia verdade. Este sector da esquerda latino-americana mostra claramente que a defesa da democracia tem prioridade sobre a defesa da soberania. Não só se junta ao "clamor global" sobre a fraude, como propõe novas eleições, mesmo antes de o Supremo Tribunal venezuelano se ter pronunciado.


Na minha opinião, esta medida é perigosa e mesmo suicida para a democracia latino-americana, tendo em conta o contexto internacional em que estamos a entrar. Não é preciso ser sociólogo para prever que o questionamento das eleições num determinado país e a exigência de novas eleições poderão ser desencadeados num futuro próximo, se os interesses económicos e geoestratégicos da potência dominante no subcontinente assim o exigirem. O abraço que alguns dos países fundadores dos BRICS deram a Nicolás Maduro revelar-se-á cada vez mais um abraço fatal, uma vez que a Rússia, a China e o Irão (que em breve se juntarão aos BRICS) estão na mira dos EUA há anos.


Outro membro fundador dos BRICS é o Brasil. Se os interesses do Brasil e dos Estados Unidos parecem coincidir na defesa da democracia, é difícil acreditar que o mesmo aconteça com os BRICS. Por muito que custe aos brilhantes diplomatas brasileiros admiti-lo, na perspetiva dos interesses geopolíticos dos EUA, o Brasil significa duas coisas: a Amazónia e o bloqueio da China à América Latina. Quanto a esta última, o máximo que os EUA aceitarão é a cisão (e consequente enfraquecimento) dos BRICS, que esperam que possa vir a acontecer através de uma possível aliança entre o Brasil e a Índia de Narendra Modi.


Se tal não acontecer, e se for verdade que os interesses económicos e geopolíticos dos EUA prevalecem sempre nesta região, não é de excluir que dentro de alguns anos sejamos confrontados com o "grito internacional" de fraude nas eleições brasileiras, exigindo a recontagem dos votos e, eventualmente, novas eleições, mesmo antes de as instituições nacionais responsáveis pela certificação das eleições se terem pronunciado. O objetivo será sempre a mudança de regime. Aliás, isso já foi tentado no Brasil, e da forma mais violenta, em 6 de janeiro de 2023. É pouco provável que isso aconteça e, do fundo das minhas convicções políticas, espero que nunca aconteça. O que me preocupa é que o procedimento de colocar um país soberano na alternativa de repetir eleições ou de se tornar um pária internacional esteja a ser legitimado por forças políticas que, a avaliar pelas lições da história, têm mais probabilidades de vir a ser vítimas dele no futuro. Por último, se este tipo de defesa da democracia prevalecesse sobre tudo o resto, poder-se-ia prever que a própria esquerda latino-americana, por uma questão de coerência, se voltaria para Cuba.


Felizmente, trata-se de uma previsão errada. Cuba não tem recursos naturais e, em todo o caso, depois de tudo o que aconteceu desde a Revolução Cubana, os EUA podem prescindir da ajuda de governos latino-americanos de esquerda para levar a cabo uma mudança de regime nas Caraíbas.


Pode ler o artigo na sua fonte original nesta ligação.

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